Caos na Previdência Social!

Em defesa da Previdência Pública, ampla e de qualidade.

terça-feira, 22 de maio de 2007

Burocracia e Previdência Social no Brasil


Uma cena já comum em uma grande cidade brasileira: durante a madrugada pessoas começam a formar uma fila na calçada. Elas trazem consigo cobertores, bancos, simples pedaços de papelão. Alguns, mais prevenidos, chegam a levar pequenas barracas, mas tal fato é raro. A espera, na maioria das vezes, é sob o luar da madrugada. Um olhar mais atento, não aquele que passa veloz no interior de um carro, com pressa e cheio de medo dos perigos da madrugada urbana, vê várias cabeças brancas, pessoas com muletas, com membros engessados, mulheres grávidas. Qualquer um com um mínimo de humanidade faria a seguinte pergunta: pessoas nessas condições e naquele horário não deveriam estar em casa dormindo, ao invés de estarem em uma fila na calçada? Mas para a maioria das pessoa que se deparam com tal situação essa questão simplesmente não se coloca. Significa que perderam o mínimo senso do que é humanidade? Provavelmente sim, mas sabem exatamente porque aquelas pessoas se submetem aquele sofrimento. E um observador com o mínimo de sofisticação política se perguntaria: por quê não se revoltam? Bom, é uma fila do INSS e essa resposta basta. Mas a explicação para essa fila não é tão simples..

Existem várias explicações para interminável espera que um cidadão, na busca de um benefício, enfrenta. Falando apenas das mais clássicas: a fila é ?cultural? o povo gosta mesmo de sofrer por isso é que vem de madrugada para fila, ?eles não podem ver uma fila que já ficam atrás?; o serviço demora porque os funcionários são todos uns vagabundos folgados que não estão nem aí para os problemas do povo. A explicação mais plausível: desmonte da máquina pública e redução da qualidade dos serviços prestados ao cidadão. E a possibilidade mais chocante que talvez nem Kafka fosse capaz de imaginar, ou seja, quando a burocracia se despe dos argumentos capazes de garantirem um pouco da sua legitimidade, tais como: ?necessidade de controle para evitar erros e fraudes?, ?os serviços são demorados porque exigem um elevado saber técnico-administrativo?. No fundo, essa ?explicação? dos entraves burocráticos quer dizer que: ?demoramos porque vamos fazer bem feito, analisar o processo em detalhes?. Mas o absurdo chegou a tal ponto que a burocracia é capaz de se auto-definir (já sem medo de revolta) enquanto coisa inútil, ou melhor, inútil naqueles pontos que deve ser e segundo determinados interesses. Assim a lentidão de uma máquina burocrática pode ser definida nos termos de uma ?ineficiência estratégica?.

Logicamente um burocrata de bom senso jamais admitiria publicamente tais coisas, e de vez em quando, quando elas coisas escapam, pouca gente tem o privilégio de conhecê-las. Um notável exemplo de sinceridade burocrática é o Texto para Discussão N° 1219 Reformas Administrativas para Minorar o Peso Fiscal da Previdência Social de autoria do senhor Marcelo Abi-Ramia Caetano, publicado pelo IPEA. Tal texto sugere a aplicação medidas administrativa para minorar o déficit previdenciário. O argumento do autor baseia-se no fato de que um ajuste na legislação previdenciária, com a perda de direitos, causaria um impacto político destrutivo, propõe então alterações administrativas que não afetam diretamente as regras legais em vigor. Com uma linguagem bem clara: quanto mais burocracia, mais entraves na concessão dos benefícios mais lentamente será a vazão de recurso dos cofres públicos. As filas imensas e os prazos infinitos são apenas reflexos sociais negativos que pouco importam. Para os burocratas, são pequenos contra-tempos, já que ?eles? (o povo) não se revolta.

A respeito das tais reformas administrativas sugeridas lemos o seguinte: "o ponto positivo dessas reformas é seu trâmite político muito mais simples"(...)"Do mesmo modo em termos políticos, a relação benefício-custo é bastante elevada, porque se obtém redução de despesas ou aumento de receitas sem passar pelo desgaste das alterações nas regras de concessão dos benefício e suas fórmulas de cálculo". Em outro trecho encontramos uma passagem interessante: "outro aspecto a se considerar é que, em alguns casos, ganhos de eficiência administrativa aumentam a despesa previdenciária. Por exemplo, maior rapidez na concessão de benefícios ou no pagamento de precatórios dão maior agilidade em itens antes represados, cuja ineficiência contribuía para diminuir os gasto." O autor do texto é um homem sem escrúpulos, admite claramente que quanto mais burocrático for o RGPS melhor para o governo, pois assim, o fluxo de recursos é administrado com eficiência no seu ponto de entrada e com uma ?ineficiência estratégica? no ponto de saída, o que permite uma menor vazão. Isso, é claro, quando se trata de transferência de recursos públicos para a parcela mais humilde da população, porém a situação é outra quando se trata do pagamento de juros da dívida pública. Neste caso, o governo sempre é eficaz, às vezes, pagando até adiantado. O autor, assim, fecha os olhos para o elemento central da atual legislação previdenciária: a redistribuição de renda e também para o fato de que os recursos da previdência são propriedade dos trabalhadores.

Portanto, se um dia você precisar de um benefício do INSS, saiba que o governo tem plena consciência da existência das filas e da demora na concessão dos benefícios, e a tendência é que as coisas piorem. Obviamente eles vão maquiar os funestos objetivos, dizendo que ?a fila do INSS é um problema estrutural e só será resolvida com ?um trabalho conjunto de toda a sociedade através de vários anos? (esses discursos prontos são despejados na mídia a todo momento) . A demora não é a toa, ela é estrategicamente organizada (o texto do IPEA deixa isso bem claro). O que não deve ser feito é tomar as ordens burocráticas como elementos naturais de uma administração racional, no fundo ela é a mais genial ferramenta de opressão e dominação que jamais fora inventada. A administração burocrática racional pode ser extremamente eficaz, mas a racionalidade não é neutra, ela serve a interesses, no caso, a ineficiência força, da pior maneira possível, a contenção das despesas com a previdência.

Tais ajustes administrativos já vem sendo feitos em alguns benefícios do INSS. É o caso do auxílio-doença e do auxílio doença por acidente de trabalho. Para esses benefícios foi estipulado um novo procedimento chamado de COPES (Cobertura Previdenciária Estimada), ou Alta Programada desde agosto de 2005. Funciona da seguinte maneira: quando uma pessoa passa pela perícia médica para que seja feita a avaliação do seu estado de saúde com o objetivo de comprovar o direito ao benefício, a data da sua recuperação já é pré-estabelecida, assim, todos que passam pela perícia médica saem com alta antes de saberem se estarão ou não reabilitados para retornar ao trabalho. Se a pessoa não estiver recuperada terá que marcar novo exame médico até quinze dias antes da alta. Muitas vezes a perícia médica chega a ser marcada para até 60 dias após a alta, o que significa que durante esses dois meses o INSS não pagará o benefício, sendo que os valores só serão recebidos pelo segurado após a perícia médica, mediante a aprovação de um novo afastamento pelo médico perito. No modelo anterior, ao invés de alta pré-estabelecida, o segurado tinha uma data de comprovação da incapacidade (DCI), o pagamento não era cessado independente de quando fosse a disponibilidade de vagas para realização da perícia. O sistema de alta programada força uma redução na vazão de recursos da previdência, visto que o período entre a alta e a nova perícia o segurado ficará sem receber o benefício. Tal engenho burocrático funciona desde que o número de médico peritos seja de tal ordem em relação à demanda de atendimentos que a perícia não seja marcada imediatamente, garantindo um intervalo de tempo sem pagamento entre a alta e a nova perícia, ou seja, um número precisamente reduzido de médicos peritos garante uma ?ineficiência estratégica? que é extremamente vantajosa para a instituição.

Existem poderosos grupos financeiros, com raízes profundas dentro do governo, que lucram com a política de superávit primário e por esse motivo a redução na concessão de benefícios é estratégica para esses grupos, que parecem ter certeza de que o povo não se revoltará. Assim, é construído um sistema composto de leis, normas, regras, documentos, exigências administrativas, filas intermináveis que aparecem perante os cidadãos como elementos naturais da administração do Estado. Boa parte desses elementos existem justamente para confundir, então a preocupação do cidadão é com o seu benefício, mais diretamente, com a sua sobrevivência e acaba sobrando pouca oportunidade para perceber que aquele que é companheiro de espera na fila também sofre com os mesmos males, ou seja, aqueles que mais dependem dos benefícios são os mais prejudicados pois são incapazes de se organizar coletivamente para cobrar condições mais justas da instituição, são incapazes de fazer política. Sem organização capaz de fazer frente a procedimentos administrativos nefastos, sempre existirão burocratas treinados na melhores universidades capazes de fazerem ?mágicas? nas contas públicas, mas neste caso, quando os déficits são milagrosamente freados significa que existem famílias inteiras que passarão meses sem nenhuma forma de sustento, mesmo que tenham contribuído rigorosamente em dia para o INSS por dez, quinze, vinte anos. A fila, portanto, é um bom reflexo da atual situação sócio-econômica pela qual o país passa, para um observador atento, ela é capaz de mostrar quem está com o poder e para onde estão indo os recursos públicos. Os aposentados, pensionistas, pessoas doentes que todos os dias batem às portas das Agências do INSS, muitas vezes na busca de um benefício de caráter alimentar, preocupam muito menos o governo do que a fome insaciável de capitais da ciranda financeira. E ao mesmo tempo corrói-se a possibilidade de organização política da sociedade, pois a questão posta como central é busca pela sobrevivência e não a conquista da cidadania.

2 comentários:

Cristiano Machado disse...

Link para o texto do IPEA
http://getinternet.ipea.gov.br/Noticias/news.php?num=515

Unknown disse...

Caro Cristiano
Parabéns pela arguta análise das intencionalidades burocráticas da nossa Previdência. A ineficiência é paradoxalmente eficaz ao manter o trabalhador afastado de seus direitos.